Saudações, criaturas terrenas!
Os microplásticos que habitam em mim saúdam os microplásticos que habitam em você.
Dessa vez uma edição curtinha para o fim de semana.
Que tal me ajudar a realizar um sonho?
Ontem eu publiquei uma campanha muito importante: a vaquinha que vai me possibilitar fazer a mastectomia masculinizadora, um tipo de cirurgia para retirar a glândula mamária e alterar a aparência do tórax para transformá-lo em um peitoral masculino.
É uma operação de afirmação de gênero, essencial para minha saúde e bem-estar como pessoa transmasculina. Falo mais um pouco desse processo na descrição da vaquinha, onde também explico os custos e o destino de cada valor envolvido.
Aqui está o link direto para a vaquinha. E aqui estão os links de fios curtinhos para divulgar nas redes sociais: xuíter, bluesky e mastodon. Se puder contribuir, agradeço muito. E se não puder, compartilhe nas redes sociais e considere mencionar a vaquinha na sua newsletter também, se você tiver uma publicação. Meu alcance nas redes é minúsculo. Toda ajuda é muito bem-vinda!
Falando do que se tira do peito
I. Mocinha
Tenho uma vaga lembrança de quando era criança pequena e, em determinado momento, surgir a obrigação de usar a parte de cima do biquíni. Acho que me bateu uma confusão. Como assim não posso continuar mergulhando sem essa peça incômoda que aperta, torce, repuxa e mal tem o que cobrir? Depois eu entendi que o uso da peça não era por mim, era pelo olhar dos outros. Era uma barreira dita de proteção, meio rito de perpassagem, atravessando expectativas externas, ansiedades parentais, ebulições hormonais, um caldo cultural de violência que adensava o ar. Poucos anos depois, ainda criança, o biquíni esteve presente num dos primeiros assédios verbais que sofri, de um grupo de garotos mais velhos, num parque aquático. E na volta, com o biquíni visível sob a roupa, um marmanjo passou de carro e me gritou, “puta!”. Se a peça deveria me blindar de alguma coisa, não sei que coisa era essa.
II. Costelas rachadas
Em 2014, o ano em que me entendi e me declarei trans, também foi lançado o álbum Transgender Dysphoria Blues, da banda de punk Against Me!. O trabalho nasceu das experiências da vocalista, Laura Jane Grace, que havia se revelado trans numa entrevista em 2012 para a Rolling Stone. Quando penso nessas eclosões que fazemos, conjurando um organismo que se molde às nossas vontades e então exibindo a planta da construção ao mundo, gosto dos caminhos tortos. Gosto quando Laura canta as angústias do início da transição (“you want them to see you / like they see every other girl / they just see a faggot / they hold their breath not to catch the sick”). Erguemos esse esqueleto de obra para desgenerificar de um lado, andamos por aí ainda meio desconjuntados para generificar de outro, temerosos, eufóricos, convictos. A voz falhando, desafinada. Transicionar é punk.
Eu passei por diversos entendimentos, questionando primeiro se meu gênero era fluido, quase como se quisesse experimentar se era possível mesmo mudar algo que parecia tão enraizado. Enfiar o dedo na massinha e ver afundar. Sentir se a textura e a elasticidade correspondiam às minhas inquietações de que o gênero que me atribuíram não cabia, não dava conta. Tive que revisitar toda a adolescência de garota lésbica-ou-bissexual que rechaçou os traços masculinos como estratégia de sobrevivência. As fases mais dolorosas pareciam rachar minhas costelas, o peito queria afundar, me engolir para dentro de mim mesmo. Então me encontrei na transmasculinidade fantástica que criei para mim, confortável como agênero, indiferente se me enxergarem simplesmente como um jovem rapaz meio esquisito, o que também não deixo de ser. Quando confrontado com a ânsia de querer ser lido de um jeito platônico, lembro que as farpas do punk é que deixam marcas. A cada dia que passa, sinto mais tesão por mim mesmo. You want them to see you, they just see a faggot. Morder a cauda da serpente fechando esse ciclo de transgressão parece profético.
III. Peito aberto de cataclismos
O distanciamento da garota que fui me permitiu enxergá-la por quem ela era e onde ela se aninha agora. (Já comentei algumas vezes como não arrasto meu entendimento transmasculino para o passado. Sempre bom lembrar que cada pessoa trans tem uma jornada única e fala de si de uma maneira diferente.) Faz mais sentido para mim enxergar a evolução da minha identidade de gênero como uma colcha de fractais sobrepostos. A criança despreocupada e sem gênero, embora se afeiçoasse à socialização com os meninos, sem entender a resistência que muitas vezes encontrava. A adolescente que transitou por expressões múltiplas, fincando-se numa feminilidade que serviu tantos propósitos pelo tempo que durou, antes de se desmanchar num caldeirão de incertezas. O jovem de vinte e poucos anos que partiu rumo a territórios inexplorados, sem bússola ou constelações no céu, ávido por deixar o peito aberto absorver a escuridão do desconhecido para oxigenar a imaginação.
Quando escutei a música Hold the Girl, da Rina Sawayama (artista que indiquei na edição #04), as peças se encaixaram. Faz muito tempo que não ando choroso. Eu meio que parei de chorar depois que comecei a terapia hormonal (e não me venham com papinho de que a testosterona dificulta o choro; eu só, tipo, FIQUEI FELIZ). E desde então eu choro só quando algo me emociona, mas choro. E essa música enganchou e saiu puxando sem dó.
Tá tudo lá. A culpa pelas promessas que fiz para a garota que fui e o abandono em meio ao turbilhão, que além das questões de gênero também passa pelo desencanto na transição da juventude para a vida adulta. O esforço para ter esse olhar introspectivo, encontrar as palavras, ousar dizê-las para mim mesmo. Como às vezes a vontade era só fugir, deixar os meus muitos eus antigos para trás, explodir tudo, me reinventar do zero, esperançoso de que ninguém vai se lembrar das vergonhas que só eu devo enxergar. E como é revigorante reconhecer o material de que somos feitos, como se diz em inglês. A fibra que tive e ainda tenho, em bom português. E como nunca fui modelo de nada, nem garota, nem garoto, mas gambiarra.
Não guardo raiva ou repulsa das partes do meu corpo que estou mudando e ainda quero mudar. Não me interessa a narrativa de que a gente precisa se odiar primeiro e laudar esse ódio para que os procedimentos que almejamos sejam validados e oferecidos. Quando escrevia num romance abandonado de uma personagem com glitches no pulmão, eletrificada por códigos defeituosos, tentava traduzir esse aperto no peito. E a dor era um elemento do processo, não a fundação. Os glitches produziam potências criativas. Minha escrita é um emaranhado como o ninho de cabos de uma velha máquina alienígena, mas faísca insistente. Transformar meu tórax com uma operação vai muito além de um desejo de me enxergar de certa maneira no espelho ou querer sair por aí sem camisa. É respirar em uníssono, costelas reparadas, pulmões luminosos, em paz com quem fui, em paz com quem sou agora, e seguir de peito aberto por novos territórios.
Muito obrigado a quem me lê faz tempo e tem me acompanhado nessa aventura. E boas vindas a quem estiver chegando agora. Sintam-se em casa, puxem uma cadeira, deixem um comentário, vamos trocar ideia.
Um abraço apertado a quem mais estiver precisando.
Até a próxima edição!