#04: Emergindo do pântano
Aventuras tradutórias, abalos metabólicos e a pulsação insistente da arte
Saudações, meu povo!
Contrário aos murmúrios maldosos dos meus inimigos reptilianos, que chafurdam no avesso da terra plana, este criptídeo que vos fala segue vivo e bem. Já não posso dizer o mesmo do país ou do planeta, meio moribundos, meio alucinados. Mas sigamos, pois somos as células de um organismo extraordinário e nosso trabalho metabólico tá longe de cair em apoptose.
Primeiro, um aviso: nos próximos dias eu vou lançar uma campanha muito importante para arrecadar a quantia para uma cirurgia. Então voltei a algumas redes sociais que tinha abandonado e enterrado, como o xuíter e o instagram. Vou precisar divulgar em todos os espaços possíveis, então quem puder seguir, aqui estão os perfis: miolosdovic (xuíter), miolosdovic (ig), victraduz (ig), miolosemiudos (bluesky) e miolosemiudos (mastodon). E me dá um oi quando seguir, assim vou saber que você é leitor/a/e da newsletter e te sigo de volta. Também tenho um canal de transmissão no Telegram e o site continua sendo o vicverso.
Não deu para recuperar nenhuma conta antiga porque eu não desativava o perfil, eu apagava mesmo. Vibrava numa frequência meio piromaníaco dos meus rastros. Mantenho que tudo que é digital se degrada em delírio. Guardo algumas exportações e históricos que nunca abro. Nos últimos tempos, tenho repensado o que fazer com minha presença & produção digital, visando preservação, segurança e longevidade nesse lodo degradado que virou a web. Não tenho respostas, estou arando o solo.
Por hora: siga os perfis e, mesmo que não tenha tempo de ler esta edição agora, fique de olho quando eu mandar a próxima com o link para a campanha e, por favor, compartilhe.
Aventuras tradutórias no pântano dos autônomos
Eu tinha pensado em fazer um breve apanhado em termos de carreira (porque sempre que dou uma sumida assim, o impulso é voltar fazendo um balanço para me convencer de que o borrão temporal não foi em vão), mas nunca gostei muito da ideia de carreira em áreas que envolvem o trabalho criativo. (Acho uma aberração à primeira vista; depois me bate um incômodo de quem não seguiu a trilha tradicional e, portanto, ainda se sente meio impostor, invasor, deslocado, marginal oculto.) Digamos então que em desterro de carreira, fui arrebatado pela tradução uns seis anos atrás e me virei pelo caminho, montando as peças da aeronave em queda livre. Fui estruturando melhor os estudos como podia (saudades imensas de frequentar a Casa Guilherme de Almeida toda semana; foi o auge do meu 2019; depois só fiz cursos online de tradução & literatura & artes & ciências, até não aguentar mais, ainda aguento e continuo fazendo um monte; hoje mesmo bati o olho num curso sobre microplásticos e vê se tô podendo me enfiar numa dessas?; que nada, mas me inscrevendo imediatamente). Sigo expandindo as áreas de atuação também (já tinha comentado dos cursos de legendagem e tradução de jogos, né?; eu queria já ter procurado serviço nessas áreas, montado um humilde portfólio com versões de jogos etc; mas a vida ó: caos).
Terminei em junho um curso de seis meses de tradução técnica na área da saúde ou tradução médica, um percurso muito rico e que me fez retomar o contato com as biológicas, meu amorzinho. Já trabalhei com tradução técnica antes (materiais diversos de tecnologia e direitos humanos), mas queria priorizar a literária (tadinho, inocente ele). Agora me voltei para a técnica de novo pensando no volume recorrente de trabalho que pode garantir uma renda mais estável. Mas também não foi uma escolha solta. Querer voltar para o campo das biológicas faz parte de um dos novos objetivos de vida que tracei: voltar para a universidade. Se meia dúzia de coisas derem certo daqui até novembro, farei a Fuvest, prestando a prova para a gradução de Saúde Pública. É uma área que me fascina há tempos. E já deu uma olhada na grade de disciplinas com antropologia & epidemiologia & bioestatística & imunologia & biologia molecular & economia brasileira & políticas de saúde etc, que coisa mais bonita? Vou seguir por onde depois que entrar? Não faço ideia, lá dentro descubro.
Quem diria que depois de tantas turbulências, as coisas têm se ajeitado. Nos meses em que não dei notícias por aqui, trabalhei em projetos muito legais. Não posso mencionar o nome da maioria porque ainda não foram anunciados (ê vida de tradutor deslocado do presente, partido de ansiedade, sanduíche de linhas temporais assíncronas).
Há algum tempo saiu minha primeira tradução para dublagem de cinema: o filme infantil Amigos Imaginários (IF, no original), com versão brasileira do estúdio UniDub. (E não, não foi ideia minha traduzir IF para MIGS, essa decisão já veio pronta do cliente.) Além da responsa, também foi uma experiência prática meio diferente. Estou acostumado a trabalhar na plataforma da Netflix (se você tiver curiosidade, o guia As Recorded Dubbing Script Scope of Work é de acesso aberto). Acostumado com os atalhos de teclado, engatado num ritmo próprio daquele fluxo de produção. Nesse caso, o filme era da Paramount (o estúdio de distribuição que comprou os direitos). Então o acesso se deu por outros meios (um site próprio para assistir aos vídeos), outros contratos (embora os termos de confidencialidade sejam todos meio parecidos; “se vazar qualquer coisa, a gente mata a sua mãe” etc), um nível de segredo que não se podia mencionar o nome do filme nem em comunicações internas (usávamos um código). E o material veio em pedaços relativos aos rolos do filme. É mais trabalhoso de início, um pouquinho mais demorado, tive que resolver novos desafios (humor para crianças é um troço difícil, viu?), mas deu uma satisfação enorme.
Gosto de aprender coisas novas, pego o jeito rápido e é bom demais quando o resultado também não demora a sair. Uma das grandes vantagens de trabalhar com dublagem é essa: pouco tempo entre um serviço entregue e o resultado final aparecer na minha TV. Eu sempre assisto a tudo (tudo mesmo) que traduzo, porque é um ciclo imbatível de feedback & aprimoramento. Às vezes noto algo que foi mudado pelo/a diretor/a ou dubladores e ficou melhor (anoto mentalmente), ou algo que não foi mudado, mas que soou esquisito (sinto uma pontada de dor, anoto também para não repetir). Vale lembrar que não existe um profissional de copidesque ou equivalente na dublagem. O texto que eu traduzo é basicamente o texto que chega ao final. Eu mesmo reviso antes de mandar para o estúdio. Também rola uma revisão interna e claro que tem o controle de qualidade. Mas o texto mesmo não é trabalhado. Alguma coisa sempre é alterada durante as gravações (99% das vezes para melhor), mas em termos de tradução, a responsa é nossa de fazer um serviço cuidadoso e não empurrar problema para os outros (embora os prazos nem sempre permitam que a gente se debruce tanto quanto gostaríamos sobre alguns pepinos). Imagina traduzir um livro e ele ser publicado só com a sua própria revisão. Tremeu aí? Pois é. Quando esbarrar num errinho em algum filme ou seriado, lembre disso e não crucifique o tradutor, por favor, a gente faz o que pode kkkk.
Outra tradução que se destacou para mim foram as duas temporadas do anime Time Patrol Bon, disponível na Netflix. É uma história de ficção científica de viagem no tempo que passa por tantos períodos históricos diferentes e pouco explorados em narrativas desse tipo, que não tinha como não me empolgar a cada novo episódio. E fiz outras séries e filmes de diferentes países que ainda vão sair e curti um bocado, além de um documentário meio diferentão sobre consumismo (que estou curioso para ver como vai ficar por causa de um elemento musical). Além das traduções, também fiz alguns pareceres para editoras e controle de qualidade para uma empresa gringa que dubla canais do YouTube.
Na literatura, traduzi o primeiro volume de uma trilogia de fantasia e um livro YA cheio de versos que me deixou com saudades de escrever poesia. Vê se pode uma coisa dessas, ficar matutando se volto a escrever poesia in this economy. O que também me levou a dar aquele sacode no próprio reflexo: e não seria esse o melhor momento? A hora em que as condições parecem impossíveis, o esgotamento que sobe ao pescoço mal deixa sobrar um fôlego, o tempo espremido nas ranhuras quase não escorre mais, estanca, cristaliza, se quebra. Não seria essa a hora de recolher os estilhaços e entalhar novas entrelinhas?
Fazer arte? *dá uma baforada no cigarro metafórico* Há quanto tempo não ouço falar dessa querida
Às vezes quando estou imerso no turbilhão dos afazeres, lavrando palavras numa tradução, me contorcendo de acrobata para manter a casa habitável e estocada, pauso um tantinho para ler um livro, assistir a um filme, e sou lembrado do quanto a arte não é só essa coisa bonita que enfeita as beiradas do dia, é o que me nutre e o que me mantém de pé. Por isso me bate um torpor tão denso se não consigo me dedicar a nada criativo por muito tempo — por mais que traduzir também seja trabalho criativo, mas falo de criar por mim, sem o peso da sobrevivência material.
Não tenho conseguido desenvolver muito bem meus projetos de ficção há meses. Escrevo assim, umas frases num rascunho aqui, anoto um borbotão de ideias ali. O romance avançou algumas migalhas. Tenho um punhado de contos despedaçados. Um projeto de cyberpunk noir weird e outro de space opera weird que não sei quando verão a luz do dia. Nunca me falta imaginação ou vontade. Às vezes me falta tempo, às vezes o ânimo esgota ou a cabeça frita de estresse. Não é uma questão de bloqueio criativo. Quem dera fosse, seria tão mais fácil de resolver. Quando era novinho, escrevia à beça, desimpedido, afobado (como era bom quase não ter responsabilidades e achar que sabia de tudo). Os anos vão passando e, apesar da escrita amadurecer, o fluxo engessa com as agruras da vida. Mas desconfio que as dificuldades sejam condição emergente de um caldo de disfunção executiva e do acúmulo de atividades domésticas e profissionais (além do eventual arroubo de “inverse dril candle math”).
Trocando em miúdos, talvez eu só precise começar a medicar meu TDAH (diagnosticado há uns dois anos e meio junto com o TEA). Por enquanto vai pesar demais bancar consultas recorrentes ao psiquiatra e mais um remédio de uso contínuo. Mas está nos planos. Talvez depois de concluir os tratamentos odontológicos (porque ainda falta pagar uma pequena fortuna) e dar início ao novo tratamento com imunobiológicos para psoríase que vou acompanhar com uma especialista no particular. Como é caro ter nascido todo bichado e mal diagramado, meus amigos. (E menciono tudo isso porque acho importante repetir o óbvio e botar as coisas em perspectiva: a manutenção do corpo é a manutenção da vida e a manutenção da vida também se dá pela arte; é só acordar amassado de uma noite insone que eu já quero esbravejar contra a existência humana e destronar deus.)
Também sei que preciso manter a paciência e ser mais gentil comigo mesmo. Eu tracei novos planos de vida e tenho cumprido as etapas uma após a outra. Tudo que alcancei até agora só foi possível porque tive que estabelecer novas prioridades e a escrita de ficção ficou mesmo de lado. Mas não abandonei a arte, não teria como arrancar o tutano dos ossos. Bate a frustração, entro em conflito, a visão anuvia, mas sigo disciplinado (em média) e sei que é tudo uma questão de tempo. Afinal, não dá para fazer nada se o corpo escangalhar de vez.
E quer saber, para quem quis se autoaniquilar por mais de uma década, ter chegado até aqui é uma conquista colossal e preciso reconhecer isso pelo esforço que foi em vez de ficar contando o tempo perdido e me refestelando nas ruínas do que se perdeu pelo caminho. Se você tá precisando escutar: nunca é tarde demais, nunca, nunquinha, jamais, sempre dá tempo de se reinventar, sempre tem jeito de folgar o aperto, arranjar uma gambiarra até segunda ordem, encaixar um rebolado no fio da navalha, que se fodam expectativas & comparações & vergonhas, ninguém sabe dos teus passos e compassos, ninguém sabe de porra nenhuma, garanto, não tema pedir ajuda e bora, não é tarde, é cedo, é aurora, mira o horizonte.
Fiz 33 anos no dia 7 de junho e, como estava acostumado a não comemorar meu aniversário, deixei passar em branco de novo. Mas desse vez bateu uma vontade de ter feito algo. Não comemorar era hábito de tempos ruins e as coisas melhoraram tanto. Fazendo um breve apanhado: faz 10 anos que me entendi e me declarei trans, 6 anos e pouco desde que me mudei para São Paulo e recomecei vida nova três vezes diferentes (passando por quatro apartamentos), uns 2 anos e meio desde que retifiquei meu nome e gênero nos documentos e 2 anos desde que comecei a terapia hormonal com testosterona (uma das melhores decisões que tomei nessa vida). Toda vez que me olho no espelho, sinto uma felicidade tão grande, uma convicção de que os riscos valeram a pena e continuam valendo.
Evento online
Nessa quarta-feira, dia 24/07, às 18h, darei uma palestra online gratuita sobre a tradução para dublagem do anime Time Patrol Bon. A palestra vai rolar na plataforma da Translators101. Até amanhã mando um link especial para vocês acessarem.
Apareçam lá (por favorzinho)! Vou falar de dublagem, tradução indireta, ficção científica e technobabble (ainda tô pensando se lanço uma proposta de exercício criativo especificamente sobre isso no final; só não sei ainda porque talvez queira deixar para fazer uma oficina no futuro, vamos ver).
Aliás, sabia que eu tenho uma página compilando os eventos que participei? A maioria tem gravação em vídeo ou áudio, confere lá.
Futuros falsos, abalos metabólicos, geomicrobiologia das entranhas planetárias
Algumas recomendações do que li nesse fim de semana:
Your Artificial Future is Repulsive: On Climate Change, Data Tech, and Artifice, de Theodora Dryer, no site Just Tech.
Climate justice is a matter of life and death and does not belong in the realm of abstraction and artifice, as data to be traded in an extractive knowledge economy.
The World Is Toxic. Welcome to the Metabolic Era, de Kelly Pendergrast, na Wired.
The metabolic turn isn’t just about learning to digest toxicity. It also plays out in fantasies—both desirous and anxious—about being digested. In times of stress, it’s a relief to imagine being crushed and consumed by some other metabolic system.
The Mysterious, Deep-Dwelling Microbes That Sculpt Our Planet, de Ferris Jabr, no The New York Times.
Earth is a rock that broiled, gushed and bloomed: the flowering callus of a half-sealed Vesuvius suspended in a bubble of breath. Earth is a stone that eats starlight and radiates song, whirling through the inscrutable emptiness of space — pulsing, breathing, evolving — and just as vulnerable to death as we are.
Grude
Quando a Rina Sawayama lançou o EP RINA em 2017, eu fiquei fissurado, escutando em looping. Dia desses voltei a ouvir e pronto, bateu o vício de novo. Tá rodando sem parar por aqui, então tô passando adiante, caso alguma pobre alma ainda não tenha sido acometida pela mesma febre.
Mas tudo que veio depois desse EP também é do caralho, então pode cair sem medo nos dois álbuns, SAWAYAMA e Hold The Girl. E agora o link obrigatório de show da Tiny Desk, que no caso dela foi num mesão mesmo durante a pandemia.
Um respiro
Consegui descansar um pouco e dormir mais nesse fim de semana, mesmo ainda trabalhando. Mas as últimas semanas foram intensas. E sinto que a rotina desandou um pouco desde meados de junho, quando tomei duas vacinas (em preparação para o tratamento com imunobiológicos) e tive uma reação meio zoada que me derrubou por três dias, o que bagunçou minha agenda. Aliás, sua carteira de vacinação está atualizada? Desfrute dessa maravilha que é o SUS. Eu tive que pagar por uma vacina que não tem no postinho e desembolsei quase 800 reais. Imagina se a gente tivesse que pagar por todas? Cuide-se, descanse, durma bem.
Logo, logo volto com a campanha.