#02: Desaguadouro, turbulência, germinação
Por menos consistência e mais viscosidade na produção textual
Nos últimos dias gritei com as nuvens que derreteria até virar uma poça, me perguntei como escreveria com os braços suados colando no tampo da mesa e resmunguei que o meu cérebro estava se liquefazendo em mingau. Incapacitado de pensar direito no mormaço de um apartamento que recebe toda a luz do sol da tarde. E nem meia lambida de vento para dar uma folga. A não ser quando o tempo vira, a chuva desaba de contra-ataque e lá vou eu fechar todas as janelas para não encharcar o piso.
Na quarta-feira andei uns 7 mil passos entre um consultório odontológico e outro aqui no bairro, a fornalha queimando no cocuruto, depois fui direto para o supermercado e voltei para casa carregado de sacolas. Incrédulo, constatei mais uma vez como a mudança de hábitos me transformou. Anos atrás, teria caído morto no meio do caminho. Agora gosto de andar e andar pensando nas histórias que escrevo, rascunhando em movimento.
Eu tinha outra coisa planejada para esta edição, que passou por reviravoltas ao longo da semana. Mas escrevo porque me sinto impelido a escrever. Diria que é por disciplina, por manter a aderência, ser consistente. Mas é tudo mentira. Escrevo quando dá gosto. Por sorte, aprendi que o gosto vem depois que sento o dedo no teclado.
Imagina se a smartband que contou meus passos também contasse as dedadas em cada tecla. Podemos ver o número de caracteres, mas quantas dedadas a mais entre o apaga-e-reescreve foram necessárias para chegar até ali? Quantas dedadas não reconhecidas, sabe? Pensa aí nas dedadas que fizeram parte da sua história.
Bom, o texto a seguir é uma mescla de observações a respeito da consistência e da viscosidade da produção textual em situação de capitalismo, intercalada com cenas de uma história que conjurei em uma faísca, inspirado por Planeta dos Abutres – se anda tudo meio inflamável ao toque, pelo menos a criatividade se atiça também.
Dobradura de sentidos, carne germinada
1.
Mês passado li uma nota da Aline Valek comentando como “a ideia da consistência foi desfigurada para se tornar um motor que nos transforma em máquinas de produção industrial de textos”. Um incômodo que também me acomete. Essa dieta líquida das redes pode fazer um bom gume afiado cair em desuso. E a ruminação virar uma irreverência descartável com obsolescência programada. Vou me deter aqui para não chegar até o outro lado dessa tubulação. Todos já sabemos que o desaguadouro dos nossos esforços mais sinceros acabam no mesmo esgoto a céu aberto do mar de conteúdos. Quero pensar noutra propriedade material. Em vez de consistência, que demanda uma estrutura periódica, previsível e mais palatável (para a indigestão não descarrilar o fluxo), gosto de pensar em viscosidade, que trata da resistência do fluido ao escoamento. Portanto, assumo que o texto é mais pegajoso, não flui por um caminho sem atritos, pode se aglomerar numa curva áspera das circunvoluções cerebrais de alguém. Às vezes, se um grumo cascudo de palavras grudar num nervo, pode doer. Ou descambar numa infecção. Aí o boca a boca dá conta do resto.
2.
O urubu-de-toró observava o astronauta moribundo na encosta. Uma floração vermelha na terra ocre denunciava o corpo se exaurindo de forças. Tinha uma farta barba grisalha por trás do vidro quebrado do capacete e olhos escuros e fundos. As costelas despontavam como dentes tortos no peito que ainda arfava, estremecendo. O urubu-de-toró sentiu as penas pretas se eriçarem com o vento tempestivo e abriu as asas. Cruzou a distância num salto e fincou as garras no astronauta. Afoito, bicou as camadas folhadas do traje espacial, expondo o ventre, e rasgou a carne. Não percebeu que engolia fios desencapados e linfa combustível junto com a macarronada de vísceras. O murmúrio de dor que escapou do homem era repetitivo, sintético. O urubu-de-toró se banqueteou até engasgar, debatendo-se com o bico enroscado em fios de cobre reluzentes. Ignorante dos microrganismos programados colonizando seu trato digestivo.
3.
Fenômenos viscosos são inescapáveis. Quanto mais tentamos nos desvencilhar, mais somos absorvidos, deglutidos, incorporados. A viscosidade é uma das características dos hiperobjetos, descritos por Tim Morton, autore e filósofe inglês, no livro The Ecological Thought (O pensamento ecológico, trad. Renato Prelorentzou, Quina Editora, 2023). Hiperobjetos são objetos distribuídos de maneira tão colossal que transcendem especificidades espaço-temporais. Materiais que fugiram ao nosso controle como o plástico. Eventos catastróficos e planetários como a mudança climática. O estômago estufado de lixo das gaivotas nas ilhas Midway do Pacífico. A famigerada latinha de Fanta no fundo da fossa das Marianas. Um desastre que ecoa, persiste, não sai da pele. O derramamento de óleo da Deepwater Horizon que contaminou a imaginação do autor Jeff VanderMeer. Nesses riachos em que me capilarizo enquanto trabalho no romance, acho que também escrevo infectado, habitado por uma legião. Mantenho a integridade do organismo, descarto a consistência do indivíduo.
4.
Desorientado, o urubu-de-toró não conseguiu bater as asas por mais do que alguns metros, caindo aos pés de um cacto de caules largos e espinhosos. Convulsionando, vomitou sobre uma flor aberta até esvaziar o estômago e desabou. Dentro da flor, um germe polinizado alguns dias atrás despertou com o sabor do ácido e dos metais corroídos. Absorveu a sopa estomacal e assimilou-se aos componentes inorgânicos. Cresceu dois pares de patas e saiu dali movido por uma vontade inexplicável que cintilava em seu sistema nervoso recém-nascido, visível em tons de azul elétrico sob a pele translúcida. A criaturinha viajou por horas a fio para se esgueirar até o corpo do astronauta moribundo, deixando um rastro gosmento para trás. Ao alcançar as botas grossas e corrugadas, galgou até a canela exposta na calça rasgada. Projetou o aparelho bucal e cravou as garras na pele para cavar uma passagem. Então a criaturinha mergulhou na corrente sanguínea que ainda corria quente e se desintegrou em milhares de pedacinhos.
5.
Às vezes olho para o tempo que trago nas mãos como um objeto geométrico irregular e mutante. Corpo celeste que aportou aqui e me pulverizou para a vida. A minha própria configuração de tormentos e prazeres como o quebra-cabeça dos cenobitas. Gosto de acariciar as faces do n-edro, desfolhar memórias truncadas, arranhar a palma nos vértices estrelados. Planejar uma rotina pode ser uma abstração, rascunho que traço atrás das pálpebras, absorto no breu. À luz do dia, no encontro com as limitações e imprevistos do cotidiano, a rotina se molda à turbulência. A estrutura rascunhada desmorona. O hábito brota das trilhas que demarcamos em meio às ruínas daquele plano distante. Ser consistente é colapsar o objeto tremulante para um cubo sólido, denso, incandescente. Requer estabilidade, ângulos retos, um terreno plano sob os pés tranquilos. Previsibilidade. Despensa cheia, agenda lotada, exames de sangue sem susto. O colapso do cubo é pura sorte.
6.
Nas veias do astronauta corria o fluido nutritivo para cultivar o ingrediente que faltava. As costelas rugiram baixinho antes de se recolherem e voltarem ao lugar na caixa torácica. A engrenagem na medula girou e recolheu as vísceras que pendiam embaraçadas sobre o ventre. Na pele, minúsculos brotamentos fúngicos exalavam um odor pungente e adocicado. As moléculas foram tragadas pelo vento e dispersadas. Não tardou para que o bando mais próximo de urubus-de-nevasca fosse afetado. Escondidos no oco do tronco de um carvalhossal, as raríssimas aves se viram indefesas frente ao cheiro. Os urubus-de-nevasca alçaram voo, formando uma massa branca no céu rosado, e avançaram no astronauta, querendo mergulhar o bico na carne germinada. Eram tantos que os pássaros cobriram o corpo do homem, cada centímetro um tufo de penas brancas e grasnidos. Satisfeito, o astronauta iniciou o protocolo final. A descarga elétrica foi o suficiente para dar um choque paralisante nos urubus e fundir seus bicos à grade epidérmica. Levantando-se da encosta, ele partiu para casa com a caça da estação.
Uma leitura que grudou
Início do romance “O amor dos homens avulsos” (ed. Companhia das Letras, 2016), de Victor Heringer. Primeira obra que li do autor, alguns anos atrás, e pela qual fiquei meio obcecado por um tempo, relendo e ruminando trechos, buscando outras histórias. Infelizmente me deparei com uma produção interrompida. O autor morreu em 2018, aos 29 anos, em Copacabana.
Escutando
Quase tudo que mencionei na edição passada. The Age of Pleasure, da Janelle Monáe, fez ainda mais sentido para mim depois que assisti a essa entrevista deliciosa no canal do Zach Campbell. Lembrei como gosto de Regina Spektor com o clipe de “All the rowboats”. Resgatei a playlist que a autora Caitlín R. Kiernan fez para Agents of Dreamland, primeira novela da trilogia lovecraftiana Tinfoil Dossier (acho que ainda sem tradução no Brasil? Alguém compra os direitos e me chama para traduzir!).
Assistindo
Planeta dos Abutres (Scavengers Reign), animação criada por Joseph Bennett e Charles Huettner que foi lançada no Max, é uma ficção científica espacial que me conquistou de imediato. Um banquete visual para quem gosta de extrapolação biológica surreal. Com um ritmo hipnótico e um enredo intimista que me deixou apegado aos personagens, curioso para explorar o terreno com eles e temeroso com o que se revelaria. Ilhados em um planeta estranho, os sobreviventes da nave Deméter se viram como podem, separados uns dos outros, trombando o tempo inteiro com as criaturas do local – animais, plantas e outras formas de vida inclassificáveis, esquisitas, ameaçadoras e belas. Gosta de FC? Quer um respiro? Assista.
Falando em selvageria
Essa semana circulou pelas redes a carta de demissão de Anne Boyer, ex-editora de poesia da New York Times Magazine. Recomendo que leia. Uma mensagem não só à revista e ao jornal, mas diria que a toda a imprensa e intelectualidade estadunidense que desvia os olhos para o genocídio dos palestinos e o papel fundamental do país no financiamento e na execução dessa atrocidade. O discurso no Brasil também anda de mal a pior. Muita gente que por anos encheu a boca (e vendeu muito livro) para falar de antirracismo, antifascismo e luta anti-colonial de repente se intimidou ou se calou frente a um massacre racista, fascista e colonialista que está sendo transmitido ao vivo e em detalhes. Ainda bem que também temos quem não se acovarde.
Abalados com a carta de Anne Boyer, muitos foram atrás de outros escritos da autora. Quero destacar essa entrevista que ela deu para Sam Jaffe Goldstein na newsletter The End of the World Review, em 2020. Mas talvez o texto mais circulado após a carta tenha sido o ensaio “No”, publicado na Poetry Foundation em 2017, que começa dizendo que a História está repleta de pessoas que simplesmente se recusaram, disseram não, obrigado, foram morar em barris, queimaram suas casas, mataram seus estupradores, se jogaram nas barricadas, disseram basta.
Apesar das circunstâncias tenebrosas, sinto-me um tantinho revigorado ao testemunhar como as palavras causam turbulência, desassossegam, fazem alguém ir atrás de ler mais, entender mais. Quiçá, sentir uma repulsa tão grande pelo que compreendeu por meio da poesia, mais do que pelo noticiário, que sinta vontade de se mexer, fazer alguma coisa mesmo que seja se negar a ser cúmplice, dizer não.
Estudos tradutórios
Resolvi deixar para a próxima edição as anotações dos cursos que estou fazendo. Quero compartilhar várias coisas sem inchar demais a edição. Mas, como tradutor e ex-aluno da Casa Guilherme de Almeida, gostaria de compartilhar um abaixo-assinado:
“Nós, estudantes e ex-estudantes dos Programas Formativo e de Aprimoramento para Tradutores Literários do Museu Casa Guilherme de Almeida (CGA) e demais representantes da sociedade civil, manifestamos publicamente nosso desacordo e total repúdio à extinção, a partir de 2024, dos Programas Formativo e de Aprimoramento para Tradutores Literários da Casa Guilherme de Almeida, decisão que nos parece abrupta, arbitrária e na contramão dos interesses da sociedade civil e da construção sólida de políticas públicas na área da cultura.”
Leia a carta na íntegra, assine e compartilhe.
Acabou? E o Jabuti? E o bafafá?
Talvez eu comente algo daqui um ou dois meses. Já estava no meu planejamento uma edição sobre Frankenstein (para falar da escrita de ficção científica, questões do corpo monstruoso-ciborgue–com-deficiência, minha relação com a obra a partir da minha experiência também monstruosa-ciborgue-com-deficiência e a tradução para dublagem do seriado turco “A Criatura”, inspirado no romance de Mary Shelley). De certa forma, o que tenho a dizer sobre o tema já responde às questões levantadas pela situação do Jabuti.
Mas em suma: IA não regulada de cu é rola.
Recentemente, a Andreessen Horowitz (uma firma de capital de risco estadunidense) admitiu que se eles tivessem que pagar royalties pelas artes e dados que estão roubando, o investimento no desenvolvimento de IAs não valeria a pena. O que não é uma surpresa para ninguém, mas às vezes é bom que as coisas sejam ditas assim às claras. Lembra quando no início da greve dos roteiristas (que reivindicou vitoriosamente a regulação do uso de IA na indústria), uma fonte disse que a estratégia da AMPTP era deixar a greve se estender até o ponto crítico em que os grevistas, sem trabalho e renda, acabariam perdendo suas casas? Não nos esqueçamos do que está em jogo.
Manda jobs
Faço tradução de ficção e não ficção, tradução de material para organizações e tradução para dublagem no par inglês-português. Também trabalho com preparação e revisão de livros e documentos e versão para o inglês.
Faz tempo que não busco trabalho com leitura sensível ou consultoria para obras com personagens e/ou autoria trans e queer, mas são tempos de vacas magras, então estou me disponibilizando para isso também.
Manda email: vicsackville at gmail
Obrigado pela leitura!
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A felicidade de abrir essa edição e ver que ela foi ilustrada com imagens do "Planeta dos Abutres", hehe <3