#01: Haruspício cibernético
Escrever como quem lê fígados e acumula estalactites de pensamento
Boas vindas à primeira edição da Miolos e Miúdos!
Estamos em novembro e posso dizer: quase nada aconteceu como planejei esse ano, mas o saldo tem sido positivo. E como sou uma criatura de prazeres simples, meu café, a comida, minhas leituras e estudos, a música e a TV, meu corpo em movimento, minha escrita, não quero muito mais do que o meu dia a dia para fechar 2023 sossegado.
Nesta edição: a apresentação da newsletter, a escrita como divinação de entranhas, escalas geológicas de tempo para pensar, as traduções que fiz esse ano e recomendações do que ler, assistir e escutar.
Miolos e Miúdos
A proposta dessa newsletter quinzenal é falar de escrita, tradução e criatividade a partir das minhas experiências como tradutor literário e audiovisual e autor de ficção especulativa (e também como desenhista, mas esse aspecto atravessa todos os outros a nível basal). Então podem esperar relatos dos processos, mergulhos em trabalhos que gosto, recomendações de leituras diversas, anotações sobre estudos de tradução, dois centavos a respeito de criação literária e o que mais me der na telha dentro dessa tríade temática.
Se você chegou por aqui sem me conhecer de outros lugares, eis uma brevíssima apresentação: Oi, sou o Victor, pode chamar de Vic, 32 anos, moro em SP, sou escritor e desenhista desde moleque, autor publicado há mais de uma década, tradutor profissional há uns 5 anos, agênero transmasculino, bissexual e neuroatípico com alguns parafusos a menos e outros a mais.
Tire os sapatos antes de entrar e sinta-se em casa.
Antes de decidir reaproveitar o título Miolos e Miúdos do projeto que antecedeu esse, considerei chamar a newsletter de Haruspício Cibernético, para representar o processo meio inescrutável, meio mágico do trabalho com as palavras – daí o haruspício – e o que corpo e tecnologia têm a ver com isso – daí o cibernético. Então acho que o melhor início para pegarmos alguma intimidade é fazer uma dissecação relâmpago dessa ideia.
O que se eviscera nas entrelinhas
Sou fascinado pela figura do harúspice. Tenho um personagem recorrente – uma criatura alada que se transforma em harúspice das próprias entranhas – que brotou em todas as minhas histórias em desenvolvimento dos últimos anos, pulando de um enredo a outro quando decido engavetar o rascunho ou recortar e costurar trechos no meio de outro mundo. Ele já teve um capítulo todinho seu, narrado em primeira pessoa, no romance meio afobado, meio experimental que concluí há uns anos (e então desmembrei e enterrei as sobras). Meu harúspice emplumado ainda não ressurgiu nos mundos em que trabalho atualmente. Mas não descarto a possibilidade de ser emboscado por ele a qualquer momento.
O haruspício (ou aruspício, do latim haruspex) é um tipo de divinação feita a partir da leitura das entranhas de animais, como ovelhas e galinhas. Esse tipo de adivinhação é praticado desde a antiguidade. Na Babilônia, por exemplo, era comum a hepatomancia, ou leitura do fígado. Mas não era qualquer um que podia sair por aí lendo fígados como um horóscopo de jornal. O conhecimento sagrado era reservado aos iniciados. O sacerdote precisava passar por um treinamento especial de extispício, a arte de interpretação dos órgãos (além do fígado, pulmões e intestinos) para analisar sua aparência, textura, cor e anomalias em busca de respostas acerca do futuro e da vontade dos deuses.
Modelos do fígado de animais eram usados para transmitir a técnica da hepatomancia aos novos pupilos, assim como da doutrina dos relâmpagos (ou arte fulgural, que nomes maravilhosos), que envolvia a interpretação dos raios. Vários desses objetos sobreviveram às intempéries ao longo dos séculos e hoje estão em museus. São peças lindíssimas. A maioria é de argila, mas um bem conhecido, o fígado de Placência, é um modelo de bronze do fígado de um carneiro. O artefato, medindo cerca de 12,7 cm por 7,6 cm e encontrado em 1877 na província de Placência, na Itália, é um instrumento etrusco de ensino. A superfície é dividida em 16 seções que representam um modelo do cosmos. Cada seção está inscrita com o nome de uma divindade, correspondente à sua casa celeste.
Acho que, de alguma maneira, sempre buscamos nos corresponder visceralmente com a abóbada acima de nossas cabeças e traçar alguma conexão umbilical com o infinito.
A imagem de expor e interpretar um ninho de vísceras pode não ser das mais agradáveis, mas a enxergo quando penso nos meus processos de escrita. Embora eu goste sim de um bom gore, não é por isso que saio jogando as tripas em tudo que faço, mas porque estou sempre pensando a respeito do avesso das coisas. Os miolos que dão nome a essa newsletter são os miolos do pão, do livro e da massa que temos dentro do crânio. Os miúdos são as entranhas de animais que comemos, mas também a miudeza das palavras que tecemos e reviramos, grânulos de sentido que podem preencher interstícios ou gerar atrito. Como ficcionista, gosto de expor a costura e desdobrar as camadas, desenhar a planta do origami do universo.
Puxando esse vértice: Uma aventura na qual ainda quero me aprofundar como ficcionista é essa matemática especulativa e orgânica da ficção estranha – corporificações hipergeométricas, fissuras fractais, esquinas que mordem, equações que germinam numa falha do espaço – um projeto não-projetado que teve início quando escrevi o “Metanfetaedro” (o conto que dá nome ao livro) em 2011, ganhou novo fôlego em 2018 quando modifiquei essa história para sair na antologia Fractais tropicais: O melhor da Ficção Científica Brasileira (Editora SESI-SP), teve uma expressão mais grotesca e surreal no conto “O Barqueiro”, da antologia Aqui quem fala é da Terra (Plutão Livros, 2018) e tem cozinhado em fogo baixo desde então nos muitos mundos secundários que conjuro e aniquilo nos escritos em andamento.
Mas preciso de tempo para viver e deixar a coisa evoluir – sofrer pressão, se infectar, ser devorada, mutar e divergir, colidir e brotar efervescente em nichos inesperados.
Por trás das estalactites da minha mente
Às vezes eu filtro o que absorvo do mundo de acordo com o grude intelectual ou sensorial do momento. Uma vez, muitos anos atrás, quando estava em um encontro com uma garota, um quadro na parede ao lado me desviou da conversa. As formas abstratas na pintura, rochosas, magmáticas e de cores frias, me lembravam espeleotemas – aquelas formações encontradas em cavernas, como estalactites e estalagmites, parecendo que um pedaço da rocha derreteu, escorreu e solidificou, resultado da sedimentação e cristalização de minerais dissolvidos na água. A imagem estava fresca na minha cabeça porque eu havia acabado de fazer um minicurso de bioespeleologia e buscava referências por toda parte.
Mencionei por alto o que observei no quadro, rimos e retomamos o papo – que eu lembro ter passado de A paixão segundo G. H., da Lispector, à turnê da Madonna (pois lembro de boas conversas), antes de afugentarmos a timidez e nos beijarmos. Mas as estalactites ficaram lá, precipitando no fundo da mente.
Na música “sorcerer”, do álbum who told you to think??!!?!?!?! (2017), o rapper Milo canta: “behind the stalactites of my mind, I flourish in the lag time” (por trás das estalactites da minha mente, eu floresço/prospero no atraso/na demora), e com isso ele se refere a algumas coisas: à capacidade de desabrochar criativamente nos tempos de tédio ou descanso, desafogado de obrigações, mas também no gosto do rapper de não seguir a batida, se demorar nesse espaço entre verso e percussão.
Eu relutei até me afeiçoar ao espaço de deslocamento de quem está quase sempre às margens da autoestrada algorítmica e autofágica. Mas essa brecha alarga e aprofunda minha percepção. E como escrever sem ter essa largura de vida? Quando me vi imerso em outra escala de tempo, não quis retomar o turbilhão desenfreado de antes, embora ainda mergulhe de vez em quando.
Fazendo-me harúspice do meu próprio âmago e cultivando espeleotemas de pensamento, escrevo com as tecnologias do meu corpo, os aparatos nervosos que me inquietam.
O processo infinito de me repetir a cada ciclo é também um processo de precipitação como o das estalactites e estalagmites, esculpindo em câmera lenta, no escuro das cavernas nas quais me abrigo para me recuperar das sobrecargas sociais.
O que eu traduzi esse ano
Traduções para dublagem
O primeiro semestre foi um período agitado e cheio de trabalho, o que me deixou bem empolgado e ancorado na minha rotina (eu não sou ninguém sem a minha rotina), que só teve um desvio quando fui parar no pronto-socorro com apendicite em abril. Mas fora isso, posso dizer que tive um ótimo semestre.
A última tradução para dublagem que fiz esse ano foi para o drama coreano Uma Dose Diária de Sol, entregue em julho para o estúdio UniDub. A série estreou na Netflix ontem, dia 3 de novembro. Nela, acompanhamos o dia a dia da Jung Da-eun, a nova enfermeira de um hospital psiquiátrico, os perrengues desse tipo de trabalho, a relação entre enfermeiros e médicos e a história dos pacientes cuidados por eles, com elementos meio oníricos, meio surreais para representar a condição de saúde mental dos personagens. Foi uma tradução de fôlego que me fez apreciar mais esse tipo de produção.
Então, após a entrega desse trabalho, veio um período de estiagem que me deixou girando igual beyblade (em parte por causa das greves de roteiristas e atores nos EUA, mas também porque ainda não tenho garantia de serviço de qualquer jeito). Fiquei uns três meses sem trabalho nenhum. Logo no período em que estava gastando mais com a cirurgia ortognática e procedimentos relacionados. Até que apareceu uma revisão de livro no fim de outubro (amém), mas nada ainda de audiovisual. Felizmente a greve dos roteiristas venceu e eles conseguiram um acordo justo. Agora ficamos na torcida para que a greve dos atores também seja vitoriosa. E que os trabalhos voltem a fluir para todo o pessoal afetado não só pelas paralisações, mas pela exploração sanguessuga que fez emergir a greve em primeiro lugar.
Segue a lista das minhas traduções para dublagem que foram lançadas esse ano, todas para o estúdio UniDub:
Uma Dose Diária de Sol. Série. Netflix.
A Criatura. Série. Netflix.
Conferência Mortal. Filme. Netflix.
Vermelho, Branco e Sangue Azul. Filme. Prime Video.
Desaparecida: O Caso Lucie Blackman. Documentário. Netflix.
Eu Nunca. Seriado. 4ª temporada. Netflix.
Capitão Fall. Animação. 1ª temporada. Netflix.
Operação: Arma Secreta. Filme. Netflix.
Amor em Tempos de Polarização. Filme. Netflix.
Traduções literárias
Minha mais recente tradução publicada é o romance de fantasia O desafio dos semideuses, primeiro volume da série Portadores do Sol, de Aiden Thomas, que comentei há alguns meses. (Dia desses recebi meu exemplar, lindíssimo com a capa dourada, e juro que tentei tirar umas vinte fotos, mas me achei péssimo em todas, dsclp.) Queria poder falar de mais trabalhos, mas esse ano (até agora, pelo menos, alô editoras) me apareceu apenas 1 (hum) livro para traduzir: I wish you all the best, de Mason Deaver, que está previsto para ser publicado ano que vem pelo selo Alt da Globo. (Falo do livro quando sair, pois adorei!)
Os dois romances são escritos por autores trans e direcionados ao público jovem adulto. É sempre uma alegria trabalhar com mais histórias de autores trans – ainda somos uma parcela minúscula da literatura publicada no país. Espero que venham mais trabalhos assim, mas também estou louco para expandir meu portfólio.
Quero muito traduzir mais livros, de vários gêneros, para vários públicos, mas tem sido difícil conseguir trabalho, qualquer trabalho. Papeando com colegas, logo se vê que a situação está braba para a esmagadora maioria dos tradutores literários. Por isso me enveredei pela tradução para dublagem e agora estou me preparando para outros campos também.
Estudos tradutórios
Vou iniciar três cursos nesse fim de ano: legendagem (já fiz alguns trabalhos com legendas para indivíduos e organizações, mas quero abrir o leque de possibilidades para as área da educação e do entretenimento), tradução para jogos (porque ora, jogos e livros me acolheram a vida toda, até fiz uns joguinhos de texto e RPG em uma vida passada) e tradução técnica na área da saúde (a gente sai da biológicas, mas a biológicas não sai da gente).
Nas próximas edições vou comentar as aulas e compartilhar minhas anotações e referências. Se tiver alguma questão relacionada a essas áreas ou ao estudo da tradução em geral, deixe nos comentários que vamos trocando ideia.
Lendo
Eu tinha começado a ler A História Secreta, da Donna Tartt, em agosto, antes da cirurgia ortognática que faria no fim daquele mês. Estava adorando. Quando voltei para casa do hospital, passei por um período longo de não conseguir me concentrar em leitura nenhuma devido à recuperação. Então o livro ficou de lado. Essa semana resolvi retomar a leitura voltando ao início. É meu segundo encontro com a autora. Li O Pintassilgo anos atrás e lembro de ficar completamente absorto pela prosa. Que sensação indescritível quando um livro me toma por inteiro. Fiquei assim lendo a série The Expanse, de James S. A. Corey, algum tempo atrás. Mas, em geral, tenho lido pouco (fora a cachoeira de material online). E foi online que li o conto Rabbit Test, de Samantha Mills, publicado na Uncanny Magazine e ganhador dos prêmios Locus, Nebula, Theodore Sturgeon e Hugo. É uma porrada mesmo. Em uma extrapolação do futuro brevíssimo e um apanhado histórico, acompanhamos gerações de mulheres que tiveram seus direitos reprodutivos negados, intercalando cenas de outras pessoas com útero, outras épocas, mas a mesma atrocidade sem fim.
Escutando
GODMODE, o disco novo da banda In This Moment, que me pegou com tudo (Maria Brink, eu te amo). Javelin, o disco novo do Sufjan Stevens, que vai ficar enganchado na minha cabeça tanto quanto Carrie & Lowell ficou uns anos atrás. Eu já tinha gostado de Chromatica na época que saiu, mas foi só lembrar de “Sine From Above” (com Elton John), que o resto do disco da Lady Gaga também tem rodado repetidas vezes. Falando em disco forjado numa pedra de crack, RENAISSANCE, da Beyoncé, me rende um treino enquanto faxino a casa. Bella Donna, de Stevie Nicks, é adequado a qualquer hora do dia. O universo de Jogos Vorazes nunca foi muito minha praia, mas a trilha sonora tem umas gemas preciosas que recupero de tempos em tempos, destaque para “Yellow Flicker Beat” (Lorde), “Shooting Arrows At The Sky” (Santigold) e “Original Beast” (Grace Jones). Deceivers, de Arch Enemy, ainda me acompanha em algumas caminhadas.
Assistindo
Doom Patrol vai deixar muitas saudades. Geração V realmente olhou para o cenário da TV e pensou: “Sabe o que tá faltando? A cabeça de uma rola inchando de sangue até explodir”. Geração V, nunca mude. Camarada Chucky denunciando a Casa Branca como o lugar mais maléfico dos EUA. Dê a ordem, camarada. Finalmente comecei a ver Upload, uma comédia de FC afiada, e estou me divertindo horrores. Nossa Bandeira é a Morte é brilhante. Fazendo a dobradinha com Black Sails, não tem mais como engolir qualquer história de pirata que não seja violentamente gay e anticolonial. A nova série do Mike Flanagan não me encantou da mesma maneira que A Maldição da Residência Hill e Missa da Meia-Noite (minhas duas favoritas), mas A Queda da Casa de Usher foi uma delicinha do começo ao fim mesmo com os pontos fracos (leve em consideração que sou fácil de agradar, basta um pouco de sanguinolência e uma Carla Gugino). Dopesick, sobre a crise de opioides nos EUA, é uma dramatização imperdível e acaba com qualquer resquício de fé na humanidade. Amei e me envolvi todinho com Silo e a nova temporada de A Roda do Tempo.
A fábrica da palavra
Dia desses escrevi no meu diário que queria fazer daquela escrita matinal um hábito desencantado e desassombrado. Compor parágrafos sólidos, blocos de palavras como tijolos, o excesso de massa escorrendo ao espremer uma linha na outra, sem a vaidade das estratégias elaboradas de procrastinação e autossabotagem. Arrastar a arquitetura ideal do sonho para a banalidade.
Quando estou nos estágios iniciais de rabiscar uma ficção, é um parto atingir esse desprendimento. Meu tesão insaciável é me demorar no mesmo parágrafo até não aguentar mais. Talvez por isso a newsletter – formato no qual me aventuro desde os idos de 2013 – me forneça um meio termo que tanto gosto. O esqueleto mecânico está posto, é rígido e inflexível, mas posso grudar a carne das ideias e pendurar as tripas que eu quiser, fazer uma bagunça, costurar pensamentos incompletos com linha de pesca, grampear uma digressão solta e sair para o mundo, como saímos todos por aí, inacabados, remendados e cheios de convicção.
Vamos papear
Dessa vez eu planejei as coisas com antecedência (meus dois neurônios levaram uma surra) e estou com uma lista caprichada de temas para as próximas edições, além de uma série de rascunhos já elaborados.
Mas também quero saber de vocês: o que gostariam de ler por aqui a respeito dessa tríade de escrita, tradução e criatividade? Tem alguma tradução minha que desperta mais curiosidade? (Saibam que já está planejado escrever sobre a dublagem de Vermelho, branco e sangue azul!) Uma história ou gênero para nos aprofundarmos? Algum processo obscuro de conjuração de mundos estranhos? Deixem suas questões nos comentários que vou anotando tudo e continuamos o papo.
Manda jobs
Faço tradução de ficção e não ficção, tradução de material para organizações e tradução para dublagem no par inglês-português. Também trabalho com preparação e revisão de livros e documentos.
Faz tempo que não busco trabalho com leitura sensível ou consultoria para obras com personagens e/ou autoria trans e queer, mas são tempos de vacas magras, então estou me disponibilizando para isso também.
Manda email: vicsackville at gmail
Obrigado pela leitura!
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Sempre bom passear pelos seus miolos, Vic.